A porta aberta para a margem:


 

 

A porta aberta para a margem:

 

uma leitura intertextual

 

 

Carlos Vinícius da S. Figueiredo (UFMS-G)

 

 

Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco (UFMS)

 

 

 

 

 

                                                  Sou homem de poucas palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Guimarães Rosa

 

 

Procurarei fazer aqui uma leitura comparativa entre os contos “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, e “A porta está aberta”, de Luiz Vilela.Tal leitura justifica-se pela forma, inovadora e criativa, como Vilela dialoga com o texto rosiano. Nos dias atuais, já soa como desgastado e quase ultrapassado falar em conceitos como o de intertextualidade. Entretanto, quando se fala, hoje, de relações literárias, amizades literárias, diálogos literários, ou até mesmo em famílias literárias, sobressai-se daí uma relação literária pertinente não só entre os amigos escritores como também entre suas respectivas obras.Antes de mais nada, devo dizer que a aproximação entre o conto de Vilela e o de Rosa não se dá pelo trabalho com a linguagem, mas sim pela artimanha montada e proposta pelo enredo. Outro traço aproximativo que fica evidente entre os escritores, mas que não nos compete explorar aqui, é o fato de ambos serem mineiros - o que nos levaria a pensar numa linhagem literária familiar. É sabido que no famoso conto rosiano, “A terceira margem do rio”, o protagonista da história (o pai), que tem sua história narrada pelo filho/narrador, manda construir uma canoa forte e resistente, “com pau de vinhático”, para depois, “sem alegria nem cuidado”, entrar na canoa e dizer adeus a toda sua família. Sua mulher, na hora do desespero, clama: Cê vai, ocê fique, você nunca volte. Tal imagem metafórica do ir e vir não por acaso vai atravessar toda a narrativa do conto e, por extensão, sua história. O que nos leva a inferir que o conto aborda a questão do tempo. Porém sabemos também que o conto trata de muitas outras questões. Não é à toa que a fortuna crítica rosiana já se esmerou por descobrir, gastando muita tinta, e chegando a breves conclusões de que o conta trata da vida, da morte, da culpa, da perda etc. Entendemos que qualquer explicação sobre a temática abordada no conto corre por fora do pensamento racionalista, deixando, talvez, a resposta a cargo da terceira margem postulada desde o título. Assim, desconsiderando tal pensamento lógico, entendemos que o conto aborda a loucura, por exemplo. Não por acaso, o narrador nos adverte de que em sua casa “a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos”. Daí podermos pensar que, se o pai de fato enlouqueceu, a constatação de que o filho abandona justamente na hora de ocupar seu lugar não é menos um gesto de loucura, mesmo que tomado pela culpa. Nessa relação, entrevê-se algo que escapa, que fica de fora, escapando à nossa compreensão. Aqui está uma primeira relação que nos remete para o conto “A porta está aberta” porque, em ambos os textos, algo indizível foge do controle dos protagonistas, deixando-os em estado de loucura (o leitor não escapa a tal constatação). Apontando com o dedo a precariedade da vida, e do tempo, sentida com a própria vida ou corpo, o filho/narrador de “A terceira margem do rio” –que bem pode ser tomada como a outra margem da vida ou da morte – lembra-nos, com suas últimas palavras, do que postulou Heráclito de que a mesma água não passa duas vezes pelo mesmo lugar :

 

 

 

 

 

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras : e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro-o rio.”( Rosa , 1974, p32).

 

Já no conto “A porta está aberta”, o protagonista compra, adquire uma canoa, pois deseja, precisa ir ao outro lado do rio. Diz que precisa ir e não sabe quando voltará e conclui: “sou apenas um homem que precisa de uma canoa” (Vilela, 2002, p.98). De posse da canoa, aponta a mesma para o leito do rio, dando as costas para a margem. Nesse momento, o narrador, preocupado se ele sabia remar ou não, conclui que “quando atingisse o outro lado, ele poderia ir subindo, beirando a margem, até chegar às árvores” (p.107). Mas para tristeza do narrador, acontece o inesperado planejado: com a canoa já chegando ao meio do rio, o sujeito jogou o remo longe. E a história chega ao fim( assim  como o conto) com o narrador se perguntando: “por que ele fizera aquilo?”(p.107). Vemos aí, sem muito esforço, uma “lembrança circular” ou, para usar a palavra de Rosa no conto, “entrelembro”, que nos remete para dentro da margem textual do conto rosiano, porque percebemos que ambos os “canoeiros” buscam a outra margem, isto é, a terceira margem que se apresenta muito mais do “bistunto” de cada um deles, ou seja, do imaginário. Ambos buscam a travessia ou, talvez, uma porta aberta para a outra margem, o desconhecido de si mesmo. E, no entanto, travessia única. Daí lembrarmo-nos que de o pai de “A terceira margem  do rio” tinha sido comparado com Noé – alusão direta ao fim do mundo e, por extensão, “ À porta está aberta”. Já no conto de Vilela, talvez não por acaso, lê-se uma passagem que pelo avesso remete-nos para o conto rosiano. O homem, de quem o canoeiro compra a canoa, diz para ele que precisa da canoa: “ela foi presente de meu pai, já falecido”(p.103 ). Tal passagem alude ao filho/narrador do conto rosiano, sobretudo naquele momento em que, estando pronto para ocupar o lugar do pai, na canoa, foge desesperado. Suas palavras –"sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?” (p.31)-valem tanto para seu desespero como também nos lembram do desespero do outro canoeiro que sem dizer porque se suicida. Seja pela travessia para a vida ou para a morte, como nos dá a entender os contos, o signo, ou metáfora, que também amarra tal relação intertextual, é a canoa . Não é à toa que o dicionário de símbolos registra que canoa/barca “é o símbolo da viagem de travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos”. Diz ainda o dicionário que “a canoa/barca dos mortos é encontrada em todas as civilizações”. O “rio” também é um símbolo que nos ajuda a compreender os contos, bem como as possíveis aproximações existentes entre eles . Para o mesmo dicionário, o simbolismo do rio pode significar a travessia de uma margem á outra; sendo travessia um obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal e o estado incondicionado. Sendo ainda a margem dessa travessia o estado que existe para além do ser e do não-ser. Aliás, conclui o mesmo dicionário, esse estado é simbolizado não só pela outra margem, como também pela água corrente sem espuma. Enfim, entre canoas, rios, travessias e veredas literárias, desenha-se uma rede textual entre a escrita de Guimarães Rosa e Luiz Vilela que está por ser desconstruida. Aqui almejou-se apenas começar a puxar o fio dessa rede sem fim.

 

 

Bibliografia:

 

 

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Editora Ática, 1998 (Col.Princípios)

 

 

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1991

 

 

FIGUEIREDO, Carlos Vinícius da Silva. A porta está aberta para a margem: uma leitura intertextual, (texto inédito apresentado no 1º Encontro de pesquisa de letras do Programa de Mestrado em letras da UFMS/CPTL, realizado no período de 21 a 23 de Set. de 2004. Cf. resumo publicado no caderno de resumos e programação à p.44).

 

 

KATHRIN.  HOLZERMAYR. ROSENFIELD. Grande Sertão: Veredas: roteiro de leitura. São Paulo: Editora Ática, 1992 (Col. Princínpios)

 

 

ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1974.

 

 

SANTOS, Paulo Sérgio N. dos.(Org.). Literatura Comparada: interfaces e transições. Campo Grande: UCDB/UFMS, 2001.

 

 

VILELA, Luiz. A cabeça. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

 

 

EDGAR CÉZAR NOLASCO é Mestre em Teoria da literatura pela UFMG – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Doutor em Literatura Comparada pela mesma universidade. Atualmente, o Prof. Dr. Edgar é Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação da UFMS no campus de Três Lagoas.

 

 

CARLOS VINÍCIUS DA SILVA FIGUEIREDO é graduando do curso de Letras-UFMS/CPTL e professor de Inglês, Espanhol e Redação no Sistema Exitus de Ensino de Três Lagoas – MS.