Estética da Recepção


 

Estética da Recepção

A literatura na perspectiva do leitor

A estética da recepção é a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e  seus colegas da Escola de Constança, no final da década de 60,[1] que retoma a problemática da história da literatura. Jauss traz de volta a discussão por não compartilhar com a orientação da escola idealista ou da escola positivista para a construção de uma história literária, uma vez que ambas não realizam seus estudos embasados na convergência entre o aspecto histórico e o estético. A inexistência desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam apenas com as obras e seus autores, deixando à margem o terceiro elemento do circuito literário, os leitores. 

Em vista disso, o teórico contrapõe-se às correntes teóricas marxista por apresentar a literatura apenas como reflexo dos fenômenos sociais, impossibilitando a definição de categorias estéticas.

No que se refere à teoria literária formalista, a crítica funda-se na concepção da obra literária como um todo autônomo e auto-suficiente, com seus elementos organicamente relacionados, independente de dados históricos ou biográficos do autor, atribuindo a verdadeira significação a sua organização interna sem necessitar da referência a uma situação externa. Desse modo:

o processo de percepção da arte surge como um fim em si mesmo, tendo a perceptibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento do procedimento como o princípio para uma teoria que, renunciando conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num método racional e, ao fazê-lo, produziu feitos de qualidade científica duradoura.[2]

Para Jauss, as duas teorias limitam-se a compreender o fato literário no âmbito da estética da representação e da produção, o que significa a exclusão da dimensão da leitura e do efeito, que é a privilegiada pela estética da recepção, tendo em vista o propósito desta em apresentar uma visão diferenciada da história da literatura pautada na historicidade da obra de arte literária, já que ela “não repousa numa conexão de ‘fatos literários’ estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”.[3] 

Sob esse ponto de vista, a estética da recepção toma como objeto de investigação o receptor. Isso exige dela a construção de uma nova concepção de leitor  que  assume, então, “seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o conhecimento histórico: o papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa”.[4]   

Com a mudança do foco de investigação para a recepção, o fato literário passa a ser descrito a partir da história das sucessivas leituras por que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado através dos tempos, porque:

a obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual.[5]

A recepção, nessa perspectiva, é compreendida “como uma concretização[6] pertinente à estrutura da obra, tanto no momento de sua produção como de sua leitura, que pode ser estudada esteticamente”,[7] considerando, assim, o leitor como um elemento também textualmente marcado na obra de arte literária. Para o teórico, privilegiar a recepção representa conceber o texto literário como um fato que não se limita à dimensão estética, pois também considera a social. Por conseguinte, desloca-se a concepção de literatura enquanto sistema de sentido fechado e definitivo para a de um sistema que se constrói por produção, recepção e comunicação, ou seja, por um relacionamento dinâmico entre autor, obra e leitor.

Sendo assim, a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre literatura e leitor, o que acarreta, necessariamente, um processo de interação entre os mesmos, cujo grau de perenidade depende dos referenciais estético-ideológicos que os configuram, isto é, em face da natureza dialógica dessa relação, a obra literária só permanece em evidência enquanto puder interagir com o receptor, sendo o parâmetro de aceitação desse o horizonte de expectativas,[8] composto pelo sistema de referências que resulta do conhecimento prévio que o leitor possui do gênero, da forma, da temática das obras já conhecidas/lidas, e da oposição entre as linguagens poética e pragmática.[9]

O sistema de referências, contudo, não se restringe aos aspectos estéticos da obra, haja vista que no ato da leitura também entra em jogo a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o efeito pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado. Em vista disso, o conjunto de referências também é regido pelas convenções, elencadas por  Zilberman, da seguinte ordem:

- social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;

-  intelectual, porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes, com seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo de sua educação formal;

-   ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio, de que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;

-   lingüística, pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação, como do espaço social em que transita.[10]

No processo de realização da leitura literária, o horizonte de expectativas do leitor pode ser satisfeito ou quebrado por uma determinada obra. Dessa relação de satisfação ou ruptura de horizontes pode-se estabelecer a distância entre a expectativa do leitor e sua realização, denominada por Jauss de distância estética, que indicará o caráter artístico da obra. Ocorrendo a satisfação, a obra caracteriza-se como sendo “arte culinária” ou de mera diversão, isto é, literatura de massa, visto que não exige nenhuma mudança de horizonte, servindo apenas para reforçar as normas literárias e sociais em vigor. No caso da quebra de expectativas, consoante Arnold Rothe,[11] pode vir a acontecer uma mudança de comportamentos e de normas ou uma rejeição por parte do público, como ocorreu, por exemplo, com Sthendal e Flaubert, provocando a formação de um novo público.

Em virtude dessas reações, tem-se a formulação do seguinte preceito teórico: somente a quebra ou a ruptura de expectativas será indicativa do valor estético de um texto, cuja avaliação, a partir da distância estética, se torna bastante independente da visão particular do crítico. Tal postura, para Regina Zilberman,[12] aproxima Jauss dos formalistas e estruturalistas, porque, de certo modo, esse critério adotado recupera o efeito de estranhamento da obra de arte literária proposto por tais teorias. E, como conseqüência pragmática, a reconstrução do horizonte de expectativas oportuniza às obras consideradas clássicas o retorno do seu viés emancipador, perdido por causa do processo de canonização, que as tornaram incapazes de suscitar novos questionamentos.[13]

Reconstruir os horizontes de expectativas de uma obra em relação ao processo de produção/recepção sofrido por ela em épocas distintas significa encontrar as perguntas para as quais o texto constitui uma ou mais respostas. A lógica da pergunta e da resposta é o mecanismo da hermenêutica que permite identificar o horizonte de expectativas do leitor e as questões inovadoras a que o texto apresenta uma ou mais respostas, como também mostrar como as compreensões variam no tempo. Dessa forma, o sentido de um texto é construído historicamente, descartando-se a idéia de sua atemporalidade. É a partir do confronto desses dois pólos que a distância estética pode ser estabelecida.

Partindo desses princípios, as grandes obras são as que permanentemente provocam nos leitores, de diferentes momentos históricos, a formulação de novas indagações que os levem a se emanciparem em relação ao sistema de normas estéticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela literatura é fruto do seu caráter social, pois, para Jauss, a interação do indivíduo com o texto faz com que o sujeito reconheça o outro, rompendo, assim, o seu individualismo e, conseqüentemente, promovendo a ampliação dos seus horizontes proporcionada pela obra literária:

A experiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.[14]  

Nesse sentido, Alliende e Condemarín salientam o papel social da leitura, literária ou não, porque o homem leitor pode ampliar as possibilidades de amadurecimentos individual e intelectual e, por conseguinte, compreender melhor a si e o mundo. Em contrapartida, “as pessoas que não lêem tendem a ser rígidas em suas idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa que lê abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras pessoas de qualquer parte”.[15] Com essas afirmações, os autores confirmam a premissa de que a leitura conduz a uma práxis concreta, sustentados na correlação existente entre as práticas de leitura de um povo e seu desenvolvimento material e social.

Entretanto, a transformação do homem, via prática da leitura, só é realizada na medida em que ele estiver aberto a viver novas experiências, despojado de uma postura autoritária e disposto a aprender, a fim de conscientizar-se de sua transitoriedade. Essa abertura leva o homem a ter mais conhecimento sobre o mundo, ter mais vivência, pois, de acordo com  Hans-Georg Gadamer, “a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências”.[16] 

A estética da recepção, portanto, é o instrumental teórico adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepção, horizonte de expectativas, distância estética e lógica da pergunta e da resposta, a análise das narrativas infantis, que constituem o corpus dessa dissertação, a fim de  se compreender o processo de produção/recepção da obra literária infantil tendo como referência o leitor, isto é, com base nos conceitos selecionados da estética da recepção é possível delinear o horizonte de expectativas de crianças de diferentes classes sociais em contexto escolar, materializado em normas literárias e concepções de mundo presentes nas narrativas infantis reproduzidas de textos literários conhecidos/lidos, uma vez que uma das tarefas da teoria recepcional, em conformidade com Zilberman,[17] é a reconstrução desse horizonte, objetivando explicitar a relação da obra literária com o seu público. Resta, ainda, delinear o espaço percorrido pelo livro na sociedade, tarefa da sociologia da leitura.

  

1.1              O livro literário no contexto social

A sociologia da leitura, como a estética da recepção, centra o seu foco de atenção no terceiro eixo do circuito literário, o leitor, contudo não se propõe investigar a relação entre leitor e texto buscando o delineamento do horizonte de expectativas, pois o que interessa são as questões extrínsecas da leitura, isto é, a abordagem está centrada na relação entre o livro e os seus mediadores sociais.

Esse campo teórico objetiva, portanto, estudar o público encarando-o não mais como elemento passivo, mas como ativo, já que a sua mudança de gosto e preferência influencia a circulação e a produção da obra literária. Nesse sentido, a análise sociológica considera todos os fatores sociais que interferem no processo de formação do gosto e que funcionam como mediadores de leitura, como também as características dos consumidores conforme sua condição social, cultural, etária, sexual, profissional, entre outros.

Sendo o seu objeto de estudo o público, a sociologia da leitura não se restringe à análise e descrição da recepção de textos literários, o que representa incluir também como objeto de estudo textos considerados marginais e subliterários. Pelo fato de o enfoque não buscar contrapartida na estética,  Regina Zilberman afirma que sua contribuição para a Teoria da Literatura fica restrita, entretanto sua importância não é reduzida por essa razão, uma vez que “suas pesquisas permitem compreender o fato literário no cotidiano de sua existência, caracterizado por sua circulação e consumo.[18]

O primeiro trabalho produzido a partir desse enfoque foi o livro Die Soziologie der literarischen Geschmacksbildung,[19] de L. L. Schücking, publicado em 1923, que procurou atingir o objetivo anteriormente descrito. Outros trabalhos deram continuidade ao estudo do público leitor, todavia, sobressaem-se os produzidos pela Escola de Bordéus,  liderados por Robert Escarpit e sua  equipe,  bem como os de Arnold Hauser e Pierre Bourdieu.

 Robert Escarpit situa o estudo da formação do público leitor no âmbito da sociologia da literatura, o que significa buscar compreender o fato literário associado ao contexto social em que está inserido e com o qual estabelece um diálogo. Não é propósito desse teórico realizar um trabalho de análise estética, pois o critério utilizado para definir literatura não é qualitativo e sim denominado por ele de “atitude ao gratuito”, que resulta numa definição de literatura como todo texto que não possui uma finalidade pragmática, cujo efeito provoca uma espécie de catarse do ponto de vista cultural.

Essa definição inicial apresenta um teor generalizante que não situa com clareza a abordagem sociológica da literatura, no entanto, em Lo literário y lo social, o Autor aprofunda o conceito de literatura em relação às questões sociológicas, fundamentando com mais precisão a proposta da Escola de Bordéus: 

o que nós denominamos literatura no século XX é a instituição que permite à sociedade impor suas estruturas além da mera linguagem, toda manifestação de uma literatura viva, caracterizada pela liberdade do escritor é, em nosso tempo, antiliteratura numa certa medida. Dito de outro modo, a literatura como fato histórico concreto, de antiguidade não superior a duzentos anos, leva consigo sua própria negação e conduz a sua própria superação.[20]

Importa, então, para Escarpit, utilizar como procedimento metodológico mais adequado o estudo dos dados de cunho objetivo, os quais serão explorados de modo sistemático sem a interferência de idéias preconceituosas. No entanto, o estudioso observa que a análise não deve se limitar aos dados estatísticos, pois outras informações fornecidas pelos estudos das estruturas sociais, tais como, regimes políticos, instituições culturais, classes sociais, profissões, organização do tempo livre, nível de analfabetismo, condições sociais do escritor, do livreiro, do editor, problemas lingüísticos, história do livro, complementam de forma decisiva a interpretação pretendida, culminando com a compreensão do público-leitor num contexto social mais abrangente. Outro procedimento é o estudo de casos concretos realizado por meio dos métodos da literatura geral ou da literatura comparada, como, por exemplo, o êxito de uma obra, a evolução de um gênero ou de um estilo, a abordagem de um tema, a história de um mito, no qual a significação dos dados  contribui para explicitar os fenômenos observados objetivamente.[21]

Embasados nessa perspectiva, através de um método empírico, os estudos realizados pela referida escola tratam o fenômeno literário a partir de três instâncias – a produção, a circulação e o consumo. As questões da produção são analisadas a fim de identificar e caracterizar os fatores “que interferem na atividade do escritor como homem de seu tempo com responsabilidade social definida”.[22] A análise da circulação das obras, por sofrer intervenção na sua publicação e distribuição de diversos mediadores, como, por exemplo, o circuito letrado (editores, livreiros e críticos literários) e o circuito popular (bibliotecas populares, imprensa, rádio, cinema, bancas de revistas e vendedores ambulantes), torna-se necessária para se compreender o papel desempenhado individualmente pelos organismos sociais participantes.

E, finalmente, o consumo é examinado a partir da descrição das diferentes modalidades existentes de público, cujas expectativas interferem na formatação do texto; das razões dos êxitos, classificados por Escarpit em semiêxito, êxito normal e o best seller, e dos fracassos das obras sob os pontos de vista comercial e social, além da análise do processo de formação do leitor, cujo resultado depende das circunstâncias sociais e materiais que tornarão o indivíduo, mediante a qualidade da relação leitura/vida, conhecedor ou consumidor da literatura.

Outro aspecto que tem sido temática de análise da sociologia da leitura é o papel dos mediadores sociais, tais como a biblioteca, a editora, a escola, a livraria, a imprensa, o sistema de distribuição, os eventos culturais, a igreja e a família. Esse enfoque é objeto de estudo de Arnold Hauser em Sociologia del publico,[23] encarado pelo teórico como fundamental, tendo em vista que “artista e público não falam a mesma língua desde o princípio. A obra de arte tem que ser traduzida a um idioma próprio para que resulte geralmente compreensível e para que a maioria possa gozá-la”.[24] Em defesa dessa concepção, argumenta que existe entre o produtor e o receptor da obra um grande abismo e são as instâncias de mediação as responsáveis pela ponte ou idioma que garante a permanência ou não do diálogo entre autor e leitor via obra, através dos tempos. Para explicitar sua concepção de mediadores de leitura o autor diz o seguinte:

Qualquer que seja a constituição de uma obra de arte, normalmente passa por muitas mãos antes de chegar do produtor ao consumidor. A sensibilidade e capacidade associativa, o gosto e o juízo estético do público são influenciados por uma larga série de intermediários, intérpretes e críticos, professores e peritos, antes de constituírem-se em pauta mais ou menos obrigatórias e critérios direcionados para obras que, todavia, necessitam de uma concessão qualitativa, de um selo acadêmico, e problemáticas segundo a opinião pública.[25]

Os mediadores de leitura assumem o papel responsável pela constituição ou não do dialógo entre autor/obra/leitor, porque a obra de arte é definida por Hauser como sendo uma construção dialética, como conversa que se estabelece entre autor e público mediante uma ação recíproca. Sendo assim, o público deixa de ter uma atitude passiva para assumir a de interlocutor, contribuindo “ao nascimento de uma forma enquanto objetividade que responde/reage à subjetividade espontânea do artista, forma cuja estrutura dialógica é inconfundível”.[26] Enfim, a obra de arte situada numa perspectiva dialógica só existe a partir da recepção, a qual só se concretiza por meio das instâncias mediadoras.

O autor salienta, ainda, que, por mais espontâneo e irresistível que seja o modo de o artista comunicar-se com o público, é necessária a presença de tradutores e intermediários para que a recepção seja compreendida de maneira correta e apropriada, pois, quanto mais desenvolvido o estilo, mais modernas as obras consideradas e menos conhecedores em arte os receptores, tanto maiores, diversas e importantes terão de ser as mediações.[27] Ressalta, entretanto, que as instâncias mediadoras podem ter uma função útil ou inútil de mediação, visto que elas podem aproximar o artista do público, reforçando a relação e, ao mesmo tempo, podem distanciar ou alienar.

Dada a importância atribuída às instâncias mediadoras, Aguiar[28] salienta que um contato freqüente e próximo do sujeito com esses organismos possibilita-lhes uma maior chance de tornar-se um leitor. Todavia, a concretização desse contato é definida, de acordo com Pierre Bourdieu,[29] pelas condições econômicas e educacionais permitidas pela classe dominante, ou seja, a transformação do indivíduo num leitor passa, necessariamente, pelo acesso aos bens culturais e, para se adentrar ao meio considerado culto, é necessário ter um certo nível de poder econômico para adquirir o código, a fim de circular no habitat natural do capital cultural. Logo, a definição da distribuição das parcelas do poder econômico, como também do que é o capital cultural cabe à classe dominante ou burguesa, por conseguinte, é ela quem dita as regras das trocas sociais.

O acesso ao capital cultural, via poder econômico, contudo, não é a garantia de que o sujeito esteja em condições de usufruí-lo, uma vez que a comunicação com a obra de arte é destinada a alguns eleitos que possuam aptidões para entender o apelo da arte. Tais aptidões são, na verdade, instrumentos adquiridos por meio do mecanismo denominado arbítrio cultural, utilizado por instâncias como a família e a escola para impor a aprendizagem dos códigos que determinam quais obras serão consideradas naturalmente dignas de serem apreciadas como arte:

A obra de arte considerada enquanto bem simbólico (e não em sua qualidade de bem econômico, o que ela também é) só existe enquanto tal para aquele que detém os meios para que dela se aproprie pela decifração, ou seja, para o detentor do código historicamente constituído e socialmente reconhecido como a condição da apropriação simbólica das obras de arte oferecidas a uma dada sociedade em um dado momento do tempo.[30]

O fato de estar desprovido desse código leva o indivíduo a perceber a obra de arte a partir do seu referencial cotidiano remetendo a sua percepção a uma ótica funcional, conforme afirma Bourdieu:

Na verdade, aqueles que não contam com os meios de acesso a uma percepção “pura” envolvem em sua apreensão da obra de arte as disposições que sustêm sua prática cotidiana, e por esta via, estão fadados a uma estética funcionalista que não passa de uma dimensão de sua ética, ou melhor, de seu ethos de classe.[31]

Desse modo, “os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los”,[32] ou seja, só é possível apropriar-se desses bens quando se detém antecipadamente os instrumentos adequados. Tal situação é o resultado do processo de reprodução cultural e social, tendo em vista que as leis que regem a transmissão cultural condicionam o retorno do capital cultural às mãos dele mesmo, reproduzindo, assim, a estrutura de distribuição desigual desse capital entre as classes sociais.

Nesse processo, a escola funciona como um dos mecanismos mais eficientes no processo de manutenção do sistema de reprodução cultural e social, pois, para o sociólogo francês: 

dentre as soluções historicamente conhecidas quanto ao problema da transmissão do poder e dos privilégios, sem dúvida, a mais dissimulada e por isto mesmo a mais adequada a sociedades tendentes a recusar as formas mais patentes da transmissão hereditária do poder e dos privilégios, é aquela veiculada pelo sistema de ensino ao contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento dessa função.[33]

O sistema de ensino é ainda mais eficiente no processo de reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural entre as diferentes classes sociais à medida que o modelo de cultura que repassa é o mais semelhante ao da classe dominante e o modo de imposição é o mais próximo da maneira de inculcação familiar burguesa. A escola constitui-se, então, como instrumento de manutenção do status quo mais adequado quando a cultura instituída enquanto tal é a pertencente à classe dominante, a qual já é sedimentada no sujeito pela educação familiar antes de chegar ao sistema formal de educação, excluindo, assim, os que recebem outro tipo de educação familiar que é depositária de outra modalidade de bagagem cultural.

Pierre Bourdieu caracteriza, então, com lucidez, a prática do sistema de ensino que está a serviço do processo de reprodução cultural e reprodução social ao afirmar o seguinte:

Pela prática de uma pedagogia implícita que exige a familiaridade prévia com a cultura dominante e que procede pela técnica de familiarização insensível, um sistema de ensino propõe um tipo de informação e formação que constitui a condição do êxito da transmissão e da inculcação da cultura. Eximindo-se de oferecer a todos explicitamente o que exige de todos implicitamente, quer exigir de todos uniformemente o que não lhes foi dado, a saber, sobretudo a competência lingüística e cultural e a relação de intimidade com a cultura e com a linguagem, instrumentos que somente a educação familiar pode produzir quando transmite a cultura dominante. Em suma, uma instância oficialmente incumbida de assegurar a transmissão dos instrumentos de apropriação da cultura dominante que não se julga obrigada a transmitir metodicamente os instrumentos indispensáveis ao bom êxito de sua tarefa de transmissão, está destinada a transmitir por seus próprios meios, quer dizer, mediante a ação de educação contínua, difusa e implícita, que se exerce nas famílias cultivadas, os instrumentos necessários à recepção de sua mensagem e necessários para assegurar a essas classes o monopólio dos instrumentos de apropriação da cultura dominante, e, por esta via, o monopólio desta cultura.[34]

No âmbito das trocas sociais em que a literatura também está inserida, Bourdieu[35] propõe uma análise sociológica ou socioanálise, cujo eixo está centrado nas relações entre o campo literário e outros campos, tais como o econômico, o político, e o religioso. Em vista disso, a proposta de análise permite compreender que o consumo do texto literário não depende somente do acesso material, mas também dos jogos de poder estabelecidos dentro do campo literário que, com suas regras próprias, determinam, por exemplo, o que é literário ou não literário, o que é tradicional ou vanguarda. O consumo de um desses tipos de texto implica situar o leitor numa determinada categoria, visto que cada tipo de texto requer o domínio de um código de decifração que é adquirido na educação familiar e na escolar. Sendo assim, a formação do leitor, numa sociedade estratificada como a atual, depende do entrelaçamento dos inúmeros campos de poder que irão configurar a possibilidade ou a impossibilidade da realização desse processo.  

Michael Apple[36] salienta que a forma adotada pela escola para manutenção da reprodução social manifesta-se por meio de sua organização curricular, a qual explicita um discurso de neutralidade, mas estabelece como parâmetro para todas as camadas sociais o modelo de sociedade da classe dominante. Desse modo, a escola apresenta por detrás desse discurso um currículo oculto, que prega a homogeneização como ponto central para a negação das diferentes vozes que constituem a diversidade social, promovendo, assim, a exclusão do aluno oriundo das camadas populares, de culturas distintas, ou seja, de todo aquele que não se enquadra no perfil determinado pelos padrões sociais vigentes. 

A sociologia da leitura, portanto, tem seu trabalho voltado para a distribuição, a circulação e o consumo de livros, ou seja, para os aspectos externos da leitura. Tal abrangência possibilita examinar o papel social do autor, a história das obras junto aos distintos públicos, os processos de produção e popularização do livro, as políticas de leitura, as práticas individuais e coletivas de leitura e, principalmente, os modos de aproximação dos leitores ao livro através dos mediadores sociais, como, por exemplo, a escola, a qual constitui o espaço social selecionado para a realização da pesquisa de campo, tendo em vista a importância e a visibilidade que apresenta enquanto mediador de leitura literária na sociedade brasileira. Além disso, a validade das respostas para as perguntas da investigação também depende da compreensão da interferência do contexto social na circulação da obra literária infantil.   

 1.3  A especificidade da narrativa literária infantil 

A produção literária destinada às crianças foi criada no âmbito escolar com o objetivo de consolidar, no século XVIII, a ascensão da burguesia européia ao poder, a qual modificou as concepções acerca da estrutura familiar.  A partir dessa mudança de conceitos, a família tornou-se unicelular, voltada à preservação da privacidade e dos elos afetivos entre pais e filhos. Dentro desse novo cenário, a criança passou a possuir o status de indivíduo especial, tendo em vista ser considerada um ente em processo de formação e, portanto, dependente do adulto. Em face da dependência, o infante deveria ser preparado pela família e pela escola para inserir-se no mundo “burguês”,  adentrar em tal mundo em consonância com os preceitos que regiam esse novo modelo de sociedade.

A perspectiva de submissão da criança frente ao universo adulto ocorria antes da ascensão da burguesia, pois, mesmo participando de modo igualitário da vida adulta, ela era mantida excluída das decisões, ou seja, a criança era como um adulto em miniatura, pois se vestia com as mesmas roupas, apenas em tamanho menor, e as brincadeiras e as leituras que entretiam adulto e criança também eram as mesmas. No entanto, essa vivência igualitária restringia-se à vida social, já que o infante estava alijado do processo de tomada de decisões.

Surgida nesse contexto histórico, a narrativa literária infantil é caracterizada em função da especificidade do leitor que possui: criança. Além dessa singularidade, outras características particularizam ainda mais esse gênero: a formação do acervo infantil valeu-se, em seus primórdios, de material já existente como a adaptação dos clássicos (o romance inglês do século XVII) e dos textos folclóricos (lendas, mitos, cantigas, contos de fadas); caracterizam-se como textos literários infantis à medida que incorporam elementos típicos dos contos de fadas, tais como a presença do maravilhoso e a peculiaridade de apresentar um universo em miniatura; a vinculação estrutural aos contos de fadas faz com que a literatura infantil sofra o mesmo processo de evolução ocorrido com essa forma. Também se evidencia  a preocupação do adulto com a criança.[37]    

Devido à última característica, o gênero apresenta um caráter unidirecional, visto que o adulto é o responsável pela sua produção e circulação e a criança, apenas pela recepção, o que torna a literatura, em princípio, assimétrica. A assimetria é gerada, consoante Zilberman,[38] ao citar Maria Lypp,  pela desigualdade entre o autor adulto e o leitor infantil no tocante às questões, dentre outras, de natureza lingüística, cognitiva e social. A autora salienta, ainda, ser esse caráter unidirecional o fator que define a preocupação do adulto com a transmissão de normas sociais ou estéticas, resultando, via experiência da leitura, na constituição do “horizonte de expectativas” da criança leitora.[39]

A referida desigualdade, entretanto, deve ser superada pelo interlocutor adulto mediante o processo de adaptação, tendo em vista a necessidade de aproximar o texto literário da natureza do leitor mirim, sem deixar de atentar, todavia, para a universalidade da arte. A presença de um caráter universal é o que garante à narrativa literária infantil sua literariedade, a qual resulta da capacidade da obra em romper com as modalidades pragmáticas de discurso e com as concepções de mundo de um determinado período. Dessa forma, a adaptação deve ser trabalhada a partir da adequação do assunto, da estrutura da história, da forma, do estilo e do meio aos interesses do leitor infantil, o que não representa a escolha por um gênero inferior. Ao aproximar o texto do universo do seu receptor, postula-se a possibilidade de se estabelecer o diálogo entre os mesmos e, por conseguinte, tornar possível à criança o acesso ao mundo real, organizando suas experiências existenciais e ampliando seu domínio lingüístico, bem como enriquecendo o imaginário.

O livro destinado à criança pode e deve dispor dos mais variados temas e assuntos, atentando o autor, apenas, para a capacidade de compreensão desse leitor, em virtude de que o mesmo se encontra num processo de amadurecimento, o que não significa ter uma visão redutora e preconceituosa, mas uma postura de respeito ao ritmo da criança, dando-lhe, assim, a oportunidade de dialogar com os referenciais encontrados no texto. Nesse sentido, algumas narrativas têm abordado temas como a paixão, presente em Cinderela, A dama e o vagabundo ou Tampinha, de Ângela Lago; o conhecimento oficial e a inseparabilidade de fantasia e realidade, em As aventuras de Alice no país das maravilhas de Lewis Carrol; a luta do velho contra o novo em Peter Pan, de J. Barrie; as dúvidas existenciais e emoções contraditórias de uma criança em busca do autoconhecimento em A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes; a deteriorização do poder e dos valores instituídos em História meio ao contrário, de Ana Maria Machado, por exemplo.

Os  assuntos abordados, enfim, são de natureza múltipla, centrados em questões objetivas ou subjetivas, tratando da realidade humana como um todo. Deve-se, no entanto, ter o cuidado para que o tratamento ficcional dado a esses  conteúdos não se limite a focalizar o conjunto de normas em vigor, mas leve o leitor infantil à compreensão do contexto social em que está inserido por meio de um espaço aberto para a reflexão crítica da sociedade.

A compreensão do texto literário, com todas as suas nuances, pela criança relaciona-se igualmente com a organização lingüística por ele apresentada, pois o interlocutor da obra é um leitor em processo crescente de aquisição da língua, cabendo ao autor no momento da escrita considerar essa questão. Isso quer dizer que as narrativas devem ser construídas com um nível de linguagem de acordo com as fases de desenvolvimento mental da criança, o qual se dá por processos evolutivos de comportamentos. Seguindo essa perspectiva, escrever para a infância não é escrever de modo simplório, mas escrever com fluência e versatilidade a fim de ampliar seu repertório lingüístico e instrumentalizá-la para perceber o jogo de linguagem característico da literatura.

Com relação à estrutura da narrativa, segundo Aguiar,[40] o processo de criação literária para a infância deve seguir o modelo tradicional do conto de fadas[41], em face do sucesso já alcançado junto a esse público. A autora observa também que, embora criados para atender objetivos meramente reprodutores da ideologia vigente, contraditoriamente, nesses contos, “a multiplicação de situações, a ênfase na solução dos problemas, a riqueza das ações, a ordenação de um mundo variado, em que diferentes temperamentos convivem, promovem o alargamento vivencial do leitor, incitando-o a participar das peripécias e a buscar respostas”.[42] Sendo assim, a narrativa pode ser estruturada dos seguintes modos:

1.    Uma situação inicial introduz o leitor no universo  ficcional, seguida de um conflito gerador das ações, a partir das quais se vai  desenrolar o processo de solução, resultando no sucesso;

2. Uma situação inicial introduz o leitor no universo ficcional, seguida de um conflito gerador de ações, que resultam num fracasso e a partir do qual vai se desenrolar um  processo de solução com vistas ao sucesso.

As duas formas indicam a construção do final pautado no sucesso, uma vez que, para Bruno Bettelheim:

essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra as dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa.[43]

No que se refere à adaptação da forma, Zilberman,[44] fundamentada na proposta de Göte Klinberg, sugere que as histórias destinadas aos infantes devem visar aos interesses do leitor, sempre considerando o seu nível de compreensão psicofísica da realidade, para que a forma selecionada atinja as suas expectativas recepcionais. As narrativas, neste sentido, devem constituir-se de enredos, cujo desenvolvimento apresente uma linearidade (começo, meio e fim), sem a presença de flash-backs ou grandes descrições.

Vale ressaltar, todavia, que a linearidade cronológica das ações, conforme Gerard Genette,[45] não faz parte da tradição da literatura ocidental, já que a coincidência temporal ou grau zero entre história e discurso é hipotética, servindo apenas como referencial, caracterizando, então, a tradição do Ocidente como portadora do processo da anacronia, usado desde a Ilíada, de Homero. Logo, a narrativa infantil, em virtude da transitoriedade do leitor, também pode utilizar como recurso o jogo temporal em forma descontínua, visando desafiar seu leitor a mergulhar num mundo ficcional mais complexo, como o faz Lygia Bojunga Nunes em Corda Bamba, por exemplo, porque a realidade apreendida e significada pela obra caracteriza-se não só pelo viés da simplicidade, mas  pelo percurso que vai desta à complexidade.

Outro dado a considerar é a materialização temporal marcada pela indefinição. Tal modo de organização do tempo assume um caráter mítico, porque “não é pautado por uma lógica que pressupõe a internalização de uma série de conceitos pertencentes a uma concepção compartimentalizada de compreensão do mundo, típica do adulto”.[46] Nessa medida, a relação mítica estabelecida entre o mundo e o infante é possível em face de o pensamento mítico se associar ao pensamento da criança, uma vez que em ambos ocorre uma apreensão do universo como uma totalidade centrada numa harmonia entre o mundo vegetal, animal e mineral com o mundo espiritual.

A concepção espacial nos contos infantis, assim como a temporal, apresenta uma indefinição em virtude do caráter mítico assumido pela narrativa, uma vez que toda construção mítica é destituída de qualquer lógica, do ponto de vista do pensamento racional. A convivência, contudo, entre o mundo mágico e o real é possível, já que no universo do mito não há separação entre os dois mundos. No entanto, a indefinição não representa a ausência, pois o desenvolvimento da história depende das ações praticadas pelas personagens, as quais só podem realizá-las dentro de um determinado lugar. Por isso, a caracterização das personagens, os conflitos e o tempo também indiciam a configuração do espaço na narrativa. 

Ainda com relação à forma, as histórias não devem conter concepções de caráter moral, explicações ou justificativas do autor, e as personagens devem provocar nas crianças um processo de  identificação, o que remete para o conceito de mimese de Aristóteles, no qual o espectador deve se reconhecer, enquanto modelo, na representação literária. Por isso, o leitor infantil tende a preferir a aventura entre crianças e jovens por se identificar com o herói, conforme constatado por Aguiar[47] em pesquisa sobre os interesses de leitura no ensino fundamental.

O herói, assim como as demais personagens ou personas dos contos infantis, em geral, apresenta um conjunto de características básicas, que permitem estabelecer o seu perfil quanto aos aspectos estéticos e socioculturais, a saber:

1. Quanto à estrutura, o personagem narrador centraliza a ação e a conduz de modo a provocar reações positivas ou negativas no leitor. Os personagens são lineares e comportam-se de acordo  com o modelo fechado de narrativa que, por sua vez, corresponde a um modelo estratificado de sociedade;

2. são, geralmente, alegorias do bem e do mal e se configuram nesse conflito dualista;

3 . representam valores que se cruzaram através de ciclos históricos; assim, podem significar ritos de iniciação, símbolos totêmicos e a luta entre forças da natureza;

4 . apresentam traços tragicômicos favorecidos pelo tipo de narrativa em que se situam: narrativas que fazem oscilar situações de equilíbrio e desequilíbrio, de conflito e polarização de valores;

5 . os personagens maravilhosos cumprem várias funções dentro da narrativa; da eminentemente lúdica à de denúncia social. As soluções maravilhosas são questionadas pelas soluções mágicas. Estas são, em contrapartida, defendidas por psicanalistas que vêem nelas a possibilidade de resolução dos problemas reais, através da representação simbólica;

6 . o personagem-criança aparece esporadicamente, simbolizando o bom senso e a inteligência; ou apresenta-se como vítima da autoridade familiar;

7 . os personagens maravilhosos mais comuns são fadas e bruxas, justamente a oposição entre forças positivas e negativas;

8 . outros personagens bastante comuns são príncipes, princesas, reis e rainhas, que significam a fantasia do poder e os conflitos dos relacionamentos interpessoais;

9 . nos contos as mesmas ações são praticadas por personagens diferentes de maneiras diferentes. Os personagens catalogados por Wladimir Propp são sete (o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso herói) e se ligam a esferas de ação. O que muda nos contos em relação aos personagens, são os atributos, que nos permitem estabelecer relações histórico-culturais variáveis.[48]

O perfil da personagem do conto infantil apresentado por Sônia Salomão Khedé revela a estreita ligação entre as escolhas do autor e o seu receptor, visto que a caracterização linear e a localização das mesmas em pólos bem definidos denotam a concepção da criança enquanto indivíduo em processo de formação e que, portanto, necessita do auxílio do adulto para poder decifrar a organização do mundo real e a partir daí compreendê-lo melhor. Vale ressaltar, entretanto, que tais escolhas evidenciam também uma determinada visão de mundo, o que implica a representação pelas personagens dos papéis sociais desempenhados pelas pessoas em sociedade de acordo com o ponto de vista do narrador.

Desse modo, a matéria narrada é trazida à superfície do texto a partir do seu ponto de vista, o qual apresenta um processo de organização interna que indica os recursos utilizados com vistas à concretização das suas intenções. Evidencia-se, então, uma posição privilegiada do narrador em relação ao leitor, o que demarca uma assimetria, visto que este depende das pistas deixadas por aquele a fim de realizar o percurso da narrativa.

Quanto às personagens crianças nas histórias infantis como protagonistas, sua presença é recente,  visto que anterior à criação da literatura infantil já havia um universo ficcional repleto de personas como as fadas, seres místicos de origem oriental, céltica e européia, presentes nas narrativas medievais direcionadas aos adultos. As antigas narrativas maravilhosas, lendas ou sagas germânicas  foram catalogadas pelos irmãos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm sem uma preocupação com o mundo infantil, e os contos folclóricos reunidos por Charles Perrault e os criados por Hans Christian Andersen caracterizavam-se pela predominância do herói adulto e dos seres fantásticos como pontos centrais da narrativa.

Sendo assim, somente na segunda metade do século XIX,  as crianças deixam de representar personagens secundárias e passam a figurar como heróis, como, por exemplo, Alice em Alice no país das maravilhas, Dorothy em O mágico de Oz, Pinóquio em As aventuras do Pinóquio, Peter Pan em Peter Pan. A introdução da criança como protagonista, de acordo com Zilberman,[49] provocou alterações na estrutura da história, porque a ação se tornou contemporânea ou datada, proporcionando à criança ver-se representada ou simbolizada na ficção, cujo desdobramento apresenta o embate entre o mundo do herói e o dos adultos.

 A inovação pode contribuir para superação da situação de inferioridade do infante em relação ao meio circundante, desde que o texto infantil funcione como suporte do leitor nesse processo, pois o papel infantil irá configurar-se em dose dupla, personagem e leitor, o que implica a quebra do monopólio do discurso do adulto, visto que a voz da criança também se faz presente. Se há um discurso constituído de uma diversidade de vozes falando de diferentes lugares, há, portanto, a multiplicação dos níveis de realidade e, assim, a construção de uma postura reflexiva perante as regras e valores sociais que moldam o comportamento do homem atual.[50]

Transformar a criança no centro do mundo da ficção, entretanto, não isenta a narrativa literária infantil de continuar sendo alvo de indagação a respeito do seu papel enquanto transmissora de normas ou questionadora das mesmas. A resposta vai depender, sobretudo, do modo como os recursos da linguagem serão manipulados na organização interna do texto, como, por exemplo, o nível de poder do narrador sobre a voz da personagem, a valorização de determinada variação lingüística e a distância maior ou menor entre o emissor do relato e o sujeito da ação.[51] Enfim, os recursos literários empreendidos na obra literária infantil serão utilizados conforme o tipo de  relação estabelecida, no universo ficcional, entre  narrador e leitor, evidenciando, assim, um processo autoritário ou de emancipação.    

Mediante a análise dos aspectos estruturais e formais do universo ficcional construído para as crianças, pode-se depreender, por conseguinte, as normas literárias – a construção das personagens, apresentação e desenvolvimento do conflito, a representação do tempo e do espaço –  e as concepções de mundo  – o lugar da criança enquanto narrador e sujeito sociohistórico – que constituem o horizonte de expectativas do leitor infantil.

 



[1] JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36)

[2] JAUSS, op. cit., p.19. (Grifos do autor)

[3] Id. Ibid., p. 24. (Grifo do autor)

[4]  Id. Ibid., p. 23.

[5]  Id. Ibid., p. 25.

[6] A noção de concretização apresentada pelos teóricos alemães tem como referência os trabalhos de Roman Ingarden e Felix Vodicka. cf. INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1973. e VODICKA, Felix. A história das repercussões das obras literárias.In: TOLEDO, Dionísio (org.). Circulo Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978. p.299-309. 

[7] AGUIAR, Vera Teixeira de, BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. p. 83.

[8] Os conceitos da hermenêutica, horizonte de expectativas e lógica de pergunta e da resposta, foram extraídos, por Jauss, da obra de Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.p.449-458, 533-556.

[9]  JAUSS, op. cit., p. 27.

[10] ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In:_____(org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 103.

[11] ROTHE, Arnold. O papel do leitor na crítica alemã contemporânea. Letras de hoje. Porto Alegre, v.39, p. 7-18, mar.,1980. (Tradução de Vera Teixeira de Aguiar).

[12] ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. p. 35. (Série Fundamentos, 41)

[13] ROTHE, op. cit., p. 11.

[14] JAUSS, op. cit., p. 52.

[15] ALLIENDE, Felipe, CONDEMARÍN, Mabel. Leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 17-18

[16] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 525. (Grifo do autor)

[17] ZILBERMAN(1989), op. cit., p.113.

[18] Id. Ibid., p. 18.

[19] Id. Ibid., p. 16. De acordo com Regina Zilberman, o título do livro  poderia ser traduzido por “A sociologia da formação do gosto literário”.

[20] ESCARPIT, Robert. Lo literario y lo social. In:_____(org.) Hacia una sociologia del hecho literário. Madrid: Edicusa, 1974. p. 18.(Tradução do autor desta dissertação)

[21] Id. Ibid., p. 30-31.

[22] AGUIAR (1996), op. cit., p.24.

[23] HAUSER, Arnold. Sociologia del público. In: _____. Sociologia del arte. Barcelona: Labor,  1977. v. 04.

[24]  Id. Ibid., p. 551. (Tradução do autor desta dissertação)

[25] HAUSER, op. cit., p. 551-552. (Tradução do autor desta dissertação)

[26] Id. Ibid., p. 559. (Tradução do autor desta dissertação)

[27] Id. Ibid., p. 588-590.

[28] AGUIAR (1996), op. cit., p.25.

[29] BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Porto Alegre: Perspectiva, 1982.

[30]  Id. Ibid., p. 283.

[31]  Id. Ibid., p. 287-288.

[32]  Id. Ibid., p. 297.

[33]  Id. Ibid., p.296.

[34]  Id. Ibid, p. 306-307.

[35] BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[36]  APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

[37] ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 10. ed. São Paulo: Global, 1998. (Teses, 1). p. 48-49.

[38]  Id. Ibid., p. 50.

[39]  Id. Ibid., p. 39.

[40] AGUIAR, Vera Teixeira de. Leituras para o 1º grau: critérios de seleção e sugestões. In:   ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 88.

[41] O conto de fadas segue o modelo do conto folclórico, estudado por Wladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso, que identificou 31 ações ou funções narrativas, pois o que muda são os nomes das personagens e não as suas ações ou funções. Em vista disso,  os contos são estruturados a partir das funções das personagens e não dos assuntos. Para o estudo do conto de fadas simplificam-se as funções de Propp, resultando na estruturação da narrativa em duas formas apresentadas no corpo desta dissertação.

[42] AGUIAR Vera Teixeira de. A literatura infantil no compasso da sociedade brasileira. In: ZILLES, Urbano (org.). Gratidão de ser. Porto Alegre: PUCRS, 1994. p. 76.

[43] BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 13.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1980. p. 14.

[44]  ZILBERMAN(1998), op. cit. p. 50-51.

[45]  GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Veja, 1995. p. 34.  

[46] BARBOSA, Maria Tereza Amodeo. Mitologia poética dos contos de fadas no Brasil. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1991. p. 102.

[47] AGUIAR (1979), op. cit., p.67.

[48] KHEDÉ, Sônia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. 2.ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 23-25. (Série Princípios)

[49]  ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil e o leitor. In: ZILBERMAN, Regina, MAGALHÃES, Ligia C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3.ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 87. (Ensaios, 82)

[50]  ZILBERMAN(1987), op. cit., p.86.

[51] Id. Ibid., p. 111.