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Releitura

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Professora: Miriam Fajardo

Releitura : Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente

Chegamos a um rio, Temos de escolher qual barca havemos de passar naquele porto, pois um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais as barcas têm um barqueiro na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno  cada um com um companheiro.

 

O primeiro que fala é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe leva um rabo muito comprido e uma cadeira de rei.

Diz o diabo:

Diabo — À barca, à barca! Vamos que a maré está boa!

Companheiro — Feito, feito! Bem está!

Companheiro — Em boa hora! Isso mesmo

Diabo — Prende o cabo rápido! Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique!

— Ó poderoso dom Enrique, está vindo?... Que coisa é esta?...Vem o

Fidalgo e, chegando a barca infernal, diz:

Fildalgo — Onde vai esta barca toda enfeitada?

Diabo — Vai para a ilha perdida, e vai  partir logo.

Fildalgo — Para lá vai a senhora?

Diabo — Senhor, a vosso serviço.

Fildalgo — Parece-me isso um  cortiço...

Diabo — Porque a ve lá de fora.

Fildalgo — Porém, a que terra  vai passar?

Diabo — Para o inferno, senhor.

Fildalgo — Terra é bem sem-sabor.

Diabo — Quê?... Vem aqui para zombar?

Fildalgo — E passageiros achais para tal habitação?

Diabo — Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais...

Fildalgo — Parece-te a ti assim!...

Diabo — Espera ser aceito?

Fildalgo —  na outra vida  há quem reze sempre por mim.

Diabo — Quem reze sempre por ti?!..

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... E tu viveste a teu prazer, por que rezam lá por ti?!...

Embarca — ou embarcai... que haveis de ir à derradeira! Mandai por  a cadeira,

que assim passou vosso pai.

Fildalgo — Quê? Quê? Quê?

Diabo — Vai ou vem! Embarcai prestes!

Fildalgo — Não há aqui outro navio?

Diabo — Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes

logo sinal.

Fildalgo — Que sinal foi esse tal?

Diabo — Do que vós vos contentastes.

Fildalgo — O da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me!.. salvador!

Anjo — Que quereis?

Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

Anjo — Esta é; que  é para você?

Fildalgo — Que me  deixes embarcar. Sou  o rei, é bom que me recolhais.

Anjo — Não se embarca tirania nesta barca divinal.

Fildalgo — Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria...

Anjo — Para vossa fantasia muito estreita é esta barca.

Fildalgo — Para senhor de tal marca não há aqui mais cortesia?  Levai-me desta ribeira!

Anjo — Não vindes vós de maneira para entrar neste navio. Então deixe a cadeira.Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobreE porque, de generoso, desprezastes os pequenos.

Diabo — À barca, à barca, senhores!

Fildalgo — Ao Inferno, todavia! Prefiro o inferno?

Oh triste! Enquanto vivi não cuidei do que tinha  Tudo era  fantasia!

Gostava de ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristeza.

Diabo — Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos...

Tomarês um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso

cais, todos bem vos serviremos.

Fildalgo — Espera- me aqui  aqui, voltarei à outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mim. Dia, Que se quer matar por ti?!...

Fildalgo — Isto bem certo o sei eu.

Diabo — Ó namorado enlouqueceu.

Fildalgo — Como poderá isso ser, ela me escrevia todos os dias?

Diabo — Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!...

Diabo — Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro bem mais pobre.

Fildalgo — Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.

Diabo — E ela, foi dar graças infinitas quando você morreu.

Fildalgo — Mas  bem ela  chorou!

Diabo — Foi choro de alegria?..

Fildalgo — E as lástimas que dizia?

Diabo — Sua mãe lhas ensinou... Entra, meu senhor, entrai: Olha a  prancha! Ponde o pé...

Fildalgo — Entremos, pois que assim é.

Diabo — Ora, senhor, descansai, passeia e suspira. Em tanto virá mais gente.

Fildalgo — Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai! Diz o Diabo ao Moço da cadeira.

 

 

À barca, à barca, boa gente,que queremos dar à vela!

Chega a ela! Chega a ela! Muitos, os de boa mente!

Oh! que barca tão valente! Vem um Onzeneiro, e pergunta ao barqueiro do Inferno, dizendo:

Onzeneiro — Para onde caminhais?

Diabo — Oh! que má hora , onzeneiro, meu parente! Como tardastes tanto?

Onzeneiro — Mais quisera eu tardar... Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto.

Diabo —  não vos livrar o dinheiro!...

Onzeneiro — Somente para o barqueiro não me deixaram nem tanto...

Diabo — Ora entrai, entrai aqui!

Onzeneiro — Não vou aí embarcar!

Diabo — Oh! que gentil recear.

Onzeneiro — Ainda agora faleci, deixa-me buscar outro barqueiro?

Diabo — Porque não irás aqui?...

Onzeneiro — E para onde é a viagem?

Diabo — Para onde tu hás de ir.

Diabo — Para a infernal comarca.

Onzeneiro — Diz! Não vou eu tal barca. Tem outra lá adiante. Vai até à barca do Anjo, e diz: O da barca! Haveis logo de partir?

Anjo — E onde queres tu ir?

Onzeneiro — Eu para o Paraíso

Anjo — Estou indo para lá. Mas outro  te levará; vai para quem te enganou!

Onzeneiro — Por quê?

Anjo — Porque esse bolsão tomará todo o navio. Minha barca é pequena

Onzeneiro — Juro a Deus que vai vazio!

Anjo — Não já no teu coração.

Onzeneiro — Já deixei minha fazenda.

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

Onzeneiro Demo barqueiro! Saiba no que me baseio? Quero lá tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro.

 Diabo — Entra, entra, e remarás! Não percamos mais maré!

Onzeneiro — Todavia...

Diabo — Para ajudar tem que em pé, cá entrarás!Irás servir Satanás, pois foi quem sempre te ajudou.

Onzeneiro — Oh! Triste, quem me cegou?

Diabo — Cale-te! Não quero ouvir choro...

Entrando o Onzeneiro na barca onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando

o barrete:

Onzeneiro — Santa Joana de Valdês!Cá é vossa senhoria?

Fildalgo — Dá ò demo a cortesia!

Diabo — Ouvis? Falai vós cortês!Vós, fidalgo, cuidareis que estais na vossa pousada?Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis!

 

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Barqueiro do Inferno:

Parvo — O, Onde está?

Diabo — Quem é?

Parvo — Eu sou. É esta a naviarra nossa?

Diabo — De quem?

Parvo — Dos tolos.

Diabo — Vossa. Entra!

Parvo — De pulo ou de voo? Soma, vim adoecer e fui má hora morrer.

Diabo — De que morreste?

Parvo — De quê? Sarna de caganeira.

Diabo — De quê?

Parvo — De caga merdeira!  rabugem que te dê!

Diabo — Entra! Põe aqui o pé!

Diabo — Entra, maluco!

Parvo — Aguardai, aguardai, E onde havemos nós ir?

Diabo — Ao porto de Lucifer.

Parvo — Há há ha

Diabo — Ó Inferno! Entra cá!

Parvo — Ò Inferno?..É ruim hein!  Barca do cornudo,  beiçudo, cornudokkkkkkkkkk  Caga no sapato, filho d e uma ppppppppp Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo sentado no guardanapo!

Neto de cagarrinhosa! Roba  cebolas! KKKKKKKK Excomungado  Burrela, cornudo sejas! Toma o pão que te caiu! A mulher que te fugiu,  Cornudo  toma o pão que te caiu!

KKKKKKKK Caga na vela! cabeça de grulha! Perna de cigarra velha  caganita de coelha, pelourinho da Pampulha! Mijãokkkkkkkkkkkkkkkkkk

 

Chega o Parvo no barqueiro do Anjo e diz:

Parvo — O da barca!

Anjo — Que me queres?

Parvo — Queres-me passar além?

Anjo — Quem és tu?

Parvo —  alguém.

Anjo — Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres por malícia não

erraste. Tua simplicidade  foi seu prazer. Espera um pouco veremos se vem alguém,

merecedor de tal bem, que deva de entrar aqui. Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas, e chega ao  barqueiro infernal, e diz:

Sapateiro — O da barca!

Diabo — Quem vem ai? Santo sapateiro honrado, como vens tão carregado?...

Sapateiro — Mandaram-me vir assim... E para onde é a viagem?

Diabo — Para o lago dos danados.

Sapateiro — Os que morrem confessados onde têm sua passagem?

Diabo —Esta é a tua barca.

Sapateiro — Renegaria eu da festa?  Como poderá isso ser, Sempre  confessei e comunguei na vida?!...

Diabo — Tu morreste excomungado: Não o quiseste dizer. Esperavas de viver, calaste dois mil enganos... Tu roubaste bem trinta anos o povo com suas mentiras

Embarca, era má para ti, que há já muito que t'espero!

Sapateiro — Pois te digo que não quero!

Diabo — Que de pés, hás de ir kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Sapateiro — Quantas missas eu ouvi, não me hão elas de prestar?

Diabo — Ouvir missa, então roubar, é caminho por aqui.

Sapateiro — E as ofertas que  eu dei na igreja? E as horas dos finados?

Diabo — E os dinheiros mal levados, que foi tua satisfação?

Ora juro a Deus que é graça!

 

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

O  da santa caravela, podereis  levar-me nela?

Anjo —  o que carrega te impede.

Sapateiro — Não mereço isso Deus ?

Anjo — Essa barca que lá está Leva quem rouba na praça.

Oh! almas embaraçadas!

Anjo — Se tu  tivestes vivido direito...

Sapateiro — Assim que determinais que vá cozer ò Inferno?

Anjo — Escrito estás no caderno das ementas infernais.

 

 Volta à barca dos diabo, e diz:

Sapateiro — O barqueiros! Que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo! Não nos detenhamos mais!

 

Vem um Frade com uma Moça pela mão,  uma espada na mão  e começou de

dançar, dizendo:

Frade —  Graças , sou cortesão

Diabo — Que é isso, padre?! Essa dama é ela vossa mulher?

Frade —  Faz tempo que tenho ela , e sempre a tive de meu,

Diabo — Fizestes bem, que é formosa! E não ficavam bravos no vosso convento santo?

Frade — E eles fazem outro tanto!

Diabo — Que coisa tão preciosa... Entra, padre reverendo!

Frade — Para onde levais  a gente?

Diabo — Para aquele fogo ardente que não temestes vivendo.

Frade — Juro a Deus que não te entendo! E este hábito não me vai?

Diabo — Gentil padre mundano a Belzebu vos encomendo!

Frade — Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesus Cristo, que eu não  posso entender isto! Eu hei de ser condenado?!... Um padre tão namorado e tanto dado à virtude? Assim Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!

Diabo — Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos.

Frade — Não.

Diabo — Pois dada está já a sentença!

Frade — Por deus! Essa seria ela! Não vai em tal caravela minha senhora Florença.

Como? Por ser namorado e folgar com uma mulher se há um frade de perder, com tanto salmo rezado?!...

Diabo — Ora estás bem aviado!

Frade — Mais estás bem corrigido!

Diabo — Devoto padre marido, haveis de ser cá pingado... Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:

Frade — Mantenha Deus esta coroa!

Frade — Vamos à barca da Glória!

 foram dançando até a barca do Anjo

Deo graças! Há lugar cá para minha reverenda? E a senhora Florrença?

 

Frade — Senhora, dá-me à vontade que este feito mal está.Vamos onde havemos direito.Eu não vejo aqui maneira senão, enfim, concluir

Diabo —  padre você há de vir.

Frade — Agasalhai-me lá Florença, e compra-se esta sentença: ordenemos de

partir. Tanto que o Frade foi embarcado,

 

 Veio uma Alcoviteira, por nome Brízida Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:

Brízida — O lá da barca?

Diabo — Quem chama?

Brízida — Brízida Vaz.

Diabo — E aguarda-me, rapaz? Como não vem ela já?

Companheiro — Diz que não há de vir cá sem Joana de Valdês.

Diabo — Entra, e remareis.

Brízida — Não quero eu entrar lá.

Diabo — Que saboroso receio!

Brízida — Não é essa barca que eu quero.

Diabo — E traz vós muita coisa?

Brízida — O que me convém levar. Que é o que tenho para  embarcar?

Brízida —  três arcas de feitiços que não podem mais levar. Três armários de mentiras, e cinco cofres de enleios, e alguns furtos alheios, assim em jóias de vestir, guarda-roupa d'encobrir, enfim - casa movediça;um estrado de cortiça com dois coxins d'encobrir. Amor carrega que é: essas moças que vendia.

Diabo — Ora ponde aqui o pé...

Brízida — Hui! E eu vou para o Paraíso!

Diabo — E quem te disse a ti isso?

Brízida — Lá hei de ir desta maré.Eu sô uma martela tal!... Açoites tenho levados

e tormentos suportados que ninguém me foi igual.Se fosse ò fogo infernal,

lá iria todo o mundo!

 

Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, eu sou Brízida Vaz.

Anjo:— Eu não sei quem te cá traz...

Brízida —Peço te ! Cuidais que trago piolhos,anjo de Deus, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa que dava as moças a molhos,a que criava as meninas

para os cônegos da Sé...Passai-me, por vossa fé,meu amor, minhas meninas,

olho de perninhas finas! E eu sou apostolada,angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas.Santa Úrsula nom converteu  que nenhuma se perdeu.

E prouve Àquele do Céu que todas acharam dono. Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponto se me perdeu!

Anjo — Ora vai lá embarcar, não estás importunando.

Brízida — Pois estou eu contando o porque me haveis de levar.

Anjo — Não cures de importunar, que não podes vir aqui.

Brízida — E que má hora eu servi, pois não me há de aproveitar!...

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

 

Brízida — O barqueiros da má hora, que é da prancha, que eis me vou?

E já há muito que aqui estou, e pareço mal cá de fora.

Diabo — Ora entra minha senhora, e será bem recebida; se vivestes santa vida,

vós o sentireis agora...

 

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, chegando a barca  dos danados, diz:

Judeu — Que vai cá? O marinheiro!

Diabo — Oh! que má hora vieste!...

Judeu — esta barca que preste?

Diabo — Esta barca é do barqueiro.

Judeu.— Passai-me por meu dinheiro.

Diabo — E o bode há cá de vir?

JudeuPois também o bode há-de vir.

Diabo — Que escusado passageiro!

Judeu — Sem bode, como irei lá?

Diabo — Nem eu não passo cabrões.

Judeu — Eis aqui quatro tostões e mais se você pagará.

Diabo — Nem tu irá vir para cá.

Judeu — Porque nom irá o judeu onde vai Brízida Vaz?Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?

Diabo — E o fidalgo, quem lhe deu...

Judeu — O mando, diga, da barca? Corregedor, coronel, castigai este louco!

Azará, pedra miúda, lodo, chanto, fogo, lenha, caganeira que te venha! Má corrença que te acuda! Por meu Deu, que te sacuda com beca nos focinhos!

Fazes burla dos meirinhos? Diga, filho da cornuda!

Parvo — Furtaste a chiba cabrão? Parece-me  gafanhoto assassinado

Diabo — Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados.

Parvo — E ele mijou nos finados

E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! E aperta o salvador, e mija na caravela!

Diabo — Demos à vela! Vós, Judeu, vai à toa, que sois mui ruim pessoa. Leva o cabrão na trela!

 

Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

Corregedor — O da barca!

Diabo — Que quereis?

Corregedor — Está aqui o senhor juiz?

Diabo — Oh amador de perdiz. gentil carrega trazeis!

Corregedor — No meu ar conhecereis que nom é ela do meu jeito.

Diabo — Como vai lá o direito?

Corregedor — Nestes feitos o vereis.

Diabo —Ora, pois, entrai. Veremos que diz i nesse papel...

Corregedor E onde vai a sua barca?

Diabo — No Inferno vos poremos.

Corregedor Como? À terra dos demos vai  um corregedor?

Diabo — Santo descorregedor, embarcai, e remaremos! Ora, entrai, pois que viestes!

Corregedor Não nela eu não vou não, não!

Diabo Vai sim , Vai sim! Dai cá a mão!Remaremos um remo destes. Fazei conta que nascestes para nosso companheiro. —Que faz , barzoneiro? Faze-lhe essa prancha prestes!

Corregedor — Oh! Renego da viagem e de quem me há-de levar!

Diabo — Não há tal costumagem.

Corregedor — Não  entendo esta barcagem,

Diabo —Se ora vos parecesse que não sabe mais que linguagem...Entra, entra, corregedor! Oh! que isca esse papel para um fogo que eu sei!

Corregedor : Um momento

Diabo Não há tempo, bacharel! Embarque!

Corregedor Sempre prezei pela justiça

Diabo — E as fortunas dos judeus que a vossa mulher levava?

Corregedor — Isso eu não o tomava eram lá percalços seus. Não são pecados meus, são pecados dela

Diabo —Ora entrai, nos negros fados! Ireis ao lago dos cães e verá os escrivães como estão tão prosperados.

Corregedor — E na terra dos danados estão os Evangelistas?

Diabo — Os mestres das burlas vistas lá estão bem feitos

 

Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um

Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

Corregedor — Ó senhor Procurador!

Procurador Beija as  mãos, Juiz! Que diz esse arrais? Que diz?

Diabo — Que és bom remador. Entra, bacharel doutor, e ireis dando na bomba.

Procurador — E este barqueiro zomba...Gosta de zombar? Essa gente que aí está para onde a levais?

Diabo — Para as penas infernais.

Procurador — Diz! Não vou eu para lá! Outro navio está cá, muito melhor assombrado.

Diabo — Ora estás bem aviado! Entra!

Corregedor — Confessaste-vos, doutor?

Procurador — Bacharel som. Dou-me à Demo! Não cuidei que era extremo, nem de morte minha dor.E vós, senhor Corregedor?

Corregedor — Eu mui bem me confessei, mas tudo quanto roubei encobri ao confessor... Porque, se não voltar, não vos querem absolver,

Diabo — Pois porque não embarcais?

Procurador Que estou esperando Deus

Diabo Embarque no meu barco  Para que esperar  mais? Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:

Corregedor — Ó arrais dos gloriosos, passai-nos neste batel!

Anjo — Oh! pragas para papel, para as almas odiosos! Como vem preciosos, sendo filhos da ciência!

Corregedor — Oh!  clemência e passai-nos como vossos!

Corregedor — Oh! não nos sejas contrários, pois nom temos outra ponte!

Anjo — A justiça divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal.

Corregedor — Oh! não praza a São Marçal! com ribeira, nem com rio!

Cuidam lá que é desvario haver cá tamanho mal!

Procurador — Que ribeira é esta tal!

Corregedor — Venha a negra prancha cá! Vamos ver este segredo.

Diabo — Entra, que cá se dirá! E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a conhecia:

Brízida — Já sequer estou em paz, que não me deixáreis lá. Cada hora sentenciada:

«Justiça que manda fazer....»

 

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal aventurados,

disse o Arrais, tanto que chegou:

Diabo — Venha, enforcado! Que diz lá Garcia Moniz?

Enforcado — Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado em morrer dependurado  e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado.

Diabo — Entra cá, governarás até as portas do Inferno.

Enforcado — Não é essa a nau que eu governo.

Diabo — Mando-te eu que aqui irás.

Enforcado — Oh! Não  praza a Barrabás! Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz são livres de Satanás... E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado; e que fosse Deus louvado que em boa hora eu cá nascera; e que o Senhor me escolhera.  E com isto mil latins, Muito  lindos, feitos de cera. E, no passo derradeiro, me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro; nem guardião do mosteiro não  tinha tão santa gente como Afonso Valente

que é agora carcereiro.

Diabo — Dava-te consolação isso, ou algum esforço?

Enforcado — Com corda  no pescoço, muito mal presta a pregação... E ele leva a devoção que há-de tornar a juntar...

Diabo — Entra, entra na barca, que ao Inferno hás de ir!

Enforcado — O Moniz há-de mentir? Disse-me que com São Miguel jantaria pão e mel tanto que fosse enforcado.  Agora não sei que é isso: não me falou em ribeira,

nem barqueiro, nem barqueira, senão - logo ò Paraíso. Isto muito em seu siso. e era santo o meu baraço... Eu não sei que aqui faço: que é desta glória improviso?

Diabo — Falou-te no Purgatório?

Enforcado — Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e o pregão vitatório;

e que era mui notório que àqueles disciplinados eram horas dos finados e missas de

São Gregório.

Diabo — Quero-te desenganar: se o que disse tomaras, certo é que te salvaras.

Não o quiseste tomar...

— Alto! Todos a tirar, que está em seco a barca!

— Saí vós, Frei Babriel! Ajudai ali a botar! Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão daquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

Cavaleiros —À barca, à barca segura, barca bem guarnecida, à barca, à barca da

vida! Senhores que trabalhais pela vida transitória, memória , por Deus, memória

deste temeroso cais! À barca, à barca, mortais, Barca bem guarnecida, à barca, à barca da vida! Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura,

neste rio está a ventura de prazeres ou dolores! À barca, à barca, senhores,

barca mui nobrecida, à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com

suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

Diabo — Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?

1º CAVALEIRO — Vós, Satanás, presumis? Atentai com quem falais!

2º CAVALEIRO — Vós que nos demandais? Sequer conhecermos bem: morremos nas Partes do Além, e não queirais saber mais.

Diabo — Entrai cá! Que cousa é essa? Eu não  posso entender isto!

Cavaleiros —Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa! Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

Anjo — Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que morrestes pelejando

por Cristo, Senhor dos Céus!

Estão livres de todo mal, mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal peleja merece paz eterna.

  E assim embarcam.

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